Com esta publicação pretende-se fazer uma análise da problemática do Poder Discricionário e, em seguida, resolver-se-à um caso prático de introdução a esta mesma matéria.
I) Quando falamos em Discricionaridade, afigura-se necessário atender a algumas questões:
1 1- Representará a discricionariedade uma
excepção ao Princípio da Legalidade?
Princípio da legalidade corresponde ao seguinte: todo o acto
administrativo tem que possuir uma lei prévia que o habilite e o conforme nos
seus elementos essenciais. O acto administrativo está vinculado à lei, não
podendo dispor em sentido contrário.
Desta feita, a resposta a esta questão será negativa-
Representa sim, um modo especial de configuração da legalidade administrativa
havendo apenas poder discricionário onde a lei os confere como tal e, mesmo
nesses casos, há sempre elementos dois vinculativos: o fim (interesse público a
prosseguir) e a competência (órgão da administração que é competente).
2 2- Quem concede discricionariedade à
Administração Pública? Como é concedido esse poder?
Quem concede: Legislador
Com base: na lei (que representa o
fundamento; o critério e o limite)
Através: das indeterminações estruturais
das normas
· Indeterminações estruturais das normas:
- As normas podem ser de natureza facultativa “pode A” ou de
natureza alternativa “deve A, B ou C” (este “pode” ou “deve” corresponde ao
«Marcador Deôntico»- elemento normativo de conexão da norma)
Nestes casos não há qualquer dúvida de que está patente um
poder discricionário atribuído à administração pública.
Antigamente, era entendimento da doutrina dominante que
apenas existia poder discricionário quando existissem indeterminações de fundo
no sistema legal que consequentemente faziam com que o legislador se socorresse
do poder administrativo para as colmatar. Quanto a estras indeterminações
estruturais, a discricionaridade tinha apenas que ver com a faculdade de
acção! (o que difere desde logo dos conceitos indeterminados)
Querela: conceitos indeterminados
· Conceitos
indeterminados:
- neste caso estaremos perante um problema de interpretação
e, consequente aplicação dos mesmos. Ou seja, procuramos uma única solução
correcta do ponto de vista da lei e, como tal, fora do problema da
discricionaridade (que se refere sempre à escolha da melhor solução perante
diversas soluções legalmente possíveis). Estes conceitos são tão amplos/ tão
abrangentes que se tornam vazios!
- O legislador aplica estes conceitos para conferir poderes
discricionários à administração?
A resposta a esta questão é passível de discordância, todavia (e em concordância com o que julgo ser a opinião do Professor Marcelo Rebelo de Sousa) crê-se que a resposta será negativa. O legislador utiliza estes
conceitos pela impossibilidade de prever todas as situações no mundo. É
impossível para o legislador preencher a previsão de uma norma com algo que
funcione para todas as situações e ainda assim, acompanhar o Direito que não é
estático e que vai acompanhando todas as alterações sociais.
- problema: admitia-se, antigamente, as situações de
discricionaridade imprópria (que derivam precisamente dos conceitos indeterminados)
nas quais a administração, sem possuir necessidade de usar poderes
discricionários, ainda assim produzia decisões que os Tribunais se viam
impedidos de avaliar por dizerem respeito a decisões de mérito. Era
entendimento globalmente aceite que os Tribunais apenas podiam avaliar a
legalidade das situações, não podendo portanto imiscuir-se em critérios
administrativos de conveniência política ou de mérito social- era aliás, uma
exigência do principio da separação de poderes.
Hoje em dia, contudo, entende-se os Tribunais podem e devem
avaliar o conteúdo do acto administrativo discricionário- quer nas suas
vertentes vinculadas (como seja a competência, a forma e o fim) quer nas suas
competências discricionárias, verificando se estão ou não respeitados os
princípios constitucionais e legais de actuação da administração pública,
nomeadamente o principio da proporcionalidade.
- O Professor Freitas do Amaral aponta três casos de
discricionaridade imprópria:
a) Liberdade probatória- casos em que a administração faz uma
apreciação livre das provas com obrigação de apurar a única solução correcta
ex.: apurar o valor de um imóvel para efeitos fiscais
b) Discricionaridade técnica- casos em que as decisões da
administração têm de ter por base estudos prévios de natureza técnica e,
segundo critérios extraídos de normas técnicas
ex.: decidir construir uma pponte implicando um conjunto
de estudos económicos e técnicos nos quais se irá basear: o juíz não controla
se a construção é um bom investimento ou se as técnicas escolhidas para a
construção são as melhores
c) Justiça administrativa- casos em que a administração
pública, no desempenho da função administrativa, é chamada a proferir decisões
essencialmente (indicando-nos desde logo que na verdade existe alguma percentagem de discricionariedade) baseadas em critérios de justiça material
ex.: classificação dos trabalhadores
1 3- Em que difere concretamente um acto discricionário de um vinculado?
Um acto é sempre composto por três elementos: o fim, o órgão competente e
o conteúdo.
1 4- Existem actos absolutamente
discricionários ou vinculados?
A resposta a esta questão será terminantemente negativa.
Quando estamos perante um acto no qual o legislador decidiu o fim e o
órgão competente (tendo ficado o conteúdo ao critério da Administração) é fácil
assimilar que nunca se poderia tratar de um acto absolutamente discricionário,
todavia é passível de confusão quando o Legislador decide os três elementos do
acto.
Se os três elementos são
vinculados, como é que podemos dizer que não se trata de um acto absolutamente
vinculado? Pois bem, a verdade é que este acto nunca poderá ser tido como
totalmente vinculado, desde logo porque há algo que compete sempre à
Administração (independentemente de ter sido esta ou não a escolher o conteúdo
do acto): decidir se pratica o acto e, decidindo praticá-lo, quando o fará.
Assim sendo, nunca temos um acto nem absolutamente vinculado nem
discricionário! Enquanto acto vinculado, caberá sempre à Administração decidir
se e quando praticá-lo e, enquanto acto discricionário caberá sempre ao
Legislador definir o fim a prosseguir e qual o órgão da Administração que terá
competência para tal.
Fim- vinculado
Órgão- vinculado .................. ACTO VINCULADO
Conteúdo- Vinculado (mas não absolutamente)
Fim- vinculado
Órgão- vinculado .................. ACTO DISCRICIONÁRIO
Conteúdo- Discricionário (mas não absolutamente)
1 5- O que é, então, a discricionaridade?
A discricionaridade corresponde a uma margem de apreciação concedida
pelo Legislador sendo a lei o seu critério, fundamento e limite; "é um
poder-dever jurídico-legal" (citando o Professor Jorge Pação)
Não corresponde, de todo, a uma zona livre do Direito – não podendo
dizer-se que se trata de uma liberdade. A Administração pública não tem como
função apenas escolher uma solução entre várias mas sim escolher a melhor
solução para atingir o fim pretendido atendendo ao caso concreto, com base em
preceitos legais- não bastando uma solução qualquer.
- Porque razão é a Administração a ter o poder discricionário?
A
administração tem a função executiva, sendo esta- de todas as funções do
Estado- a quem está mais próxima do caso individual e concreto.
II)Uma vez tratada a problemática da Discricionaridade atentaremos, como referido anteriormente, a um caso prático de introdução à matéria em apreço.
Conteúdo da norma:
“O Presidente do Conselho Directivo pode atribuir
aos alunos da Faculdade de Letras em situação de grave carência económica
uma bolsa de estudo de montante adequado”
No exercício desta competência, o Presidente do Conselho
Directivo praticou os seguintes actos:
a)
“Tendo
Ana um rendimento mensal de 2.500,00€, considero que se trata de uma estudante
em situação grave carência económica e atribuo uma bolsa de estudo mensal no
valor de 500,00€”
b) “Bernardo,
que tem um rendimento mensal de 500,00€, encontra-se em situação de grave
carência económica. Atribuo-lhe, por isso, uma bolsa de 500,00€” – Bernardo tem, na
verdade, 5.000,00€ de rendimento mensal
c) “Catarina
tem um rendimento mensal de 1.250,00€ e, logo, não
pode ser considerada uma estudante em situação de grave carência económica. O
pedido é indeferido” – Catarina tem, contudo, avultadas despesas fixas com os
três menores a seu cargo e com um ascendente com graves problemas de saúde,
factos esses de que deu atempadamente conhecimento ao Presidente do Conselho
Directivo
d) “A
Diogo, aluno que se tem destacado pelas brilhantes notas obtidas nesta
Faculdade, atribuo uma bolsa de estudo de 1.250,00€, para que possa
continuar o seu bom desempenho”
e) “A
Eduardo, estudante carenciado, atribuo uma bolsa de estudo no valor de 1.250,00€” – Na
verdade, o Presidente do Conselho Directivo actuou movido pela grande amizade
que sempre o uniu ao pai de Eduardo”
f) “A
Francisca, estudante gravemente carenciada por apenas dispor de 125,00€ de rendimento
mensal, atribuo uma bolsa de estudo de 5.000,00€”
*Aprecie a norma
legal em causa e a validade dos referidos actos administrativos*
Nota 1) “pode”- este marcador deôntico indica-nos que estamos
perante uma indeterminação estrutural da norma, mais concretamente uma norma
facultativa. Está em causa um poder discricionário atribuído ao Presidente que
tem que ver apenas com a faculdade de acção (este pode ou não agir).
Nota 2) “grave carência económica”- (o que é necessário para
ser considerada como grave a carência económica?). Estamos perante um conceito
indeterminado mediante o qual o Presidente do Conselho Directivo terá de fazer
um preenchimento valorativo pessoal
Nota 3) “montante adequeado”- não tanto um conceito
indeterminado mas sim uma remissão ao Princípio da Proporcionalidade, acaba por
representar um limite
Nota 4) Posto o referido, a discricionaridade de acção
patente no marcador deôntico “pode” está dependente do preenchimento do
conceito indeterminado “grave carência económica” e sujeito ao limite do
princípio da proporcionalidade patente na referência ao montante “adequado”.
Daqui, decorre um problema prévio do preenchimento do
conceito quanto a se se pode atribuir poder discricionário ou não ao
Presidente.
- O Professor Diogo Freitas do Amaral, distingue diferentes
conceitos e, se seguirmos por ele optamos por: valoração objectiva ou
subjectiva
- Os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e Mário Oliveira,
afastam a discricionaridade no preenchimento dos conceitos indeterminados que a
lei nos dá. Temos de fazer uma interpretação teleológica e explicar que é assim
que a Administração tem de preencher o conceito indeterminado
- O Professor Francisco Sousa, identifica que a obrigação da
Administração é fazer um juizo de prognóse ou seja, tem de antecipar o que se
vai passar. E quando não consegue aquilo que a administração tem de fazer, é
com os elementos que tem em presença procurar escolher a opção do ponto de
vista das normas constitucionais da proporcionalidade e igualdade, aquilo que
se apresenta como melhor opção.
Questão: como vai o Presidente do Conselho Directivo
preencher esse conceito indeterminado?
Através da existente legislação (que o orienta) e, com
recurso a Princípios gerais de Direito Administrativo. (Interpretação
jurídica e não discricionaridade administrativa- ou seja, verdadeiramente, o
decisor administrativo não escolhe arbitrariamente uma solução mas sim a escolha mais adequada de acordo com o referido acima)
= Então =
Fim da norma- ajudar os alunos com mais dificuldades a
prosseguirem os estudos---» ELEMENTO VINCULADO
Órgão competente- Presidente do CD (norma habilita-o)-----» ELEMENTO VINCULADO
Conteúdo da norma (meio usado)- o valor da bolsa de
estudo---» ELEMENTO DISCRICIONÁRIO
Acto a) b) c) f) – está patente a violação do princípio da
proporcionalidade, uma vez que há casos em que são atribuídas bolsas de valor
mínimo a quem possui menos rendimentos e de valores elevados a quem tem
rendimentos superiores.
Mais concretamente:
·
Acto a)- (Acrescentando ao já referido quanto a esta alínea do caso)- Das duas uma: ou o Presidente recorre a
critérios legais e, portanto, irá ver os elementos que existem nas normas
legais acerca dos valores que tornam uma pessoa carenciada (subsidio de
desemprego, salário mínimo etc). E, fazendo isto, terá sempre uma margem de
interpretação relativamente ampla dentro de certos valores para completar com a
sua interpretação objectiva e chegar a um montante.Ou então, em vez de se
socorrer dos conceitos que estão na lei, irá directamente ao art.9º Código
Civil e fará uma interpretação sistemática. Isto, para tentar entender o que é
que na situação concreta é grave carência económica e, sempre, de acordo com os
princípios constitucionais que devem orientar a actividade administrativa-
nomeadamente o da proporcionalidade.
Ou seja, ou
adopta valores já previstos na lei ou faz uma interpretação sistemática para
preencher através dessa interpretação o conceito indeterminado.
O acto
será, portanto, anulável uma vez que não cabe no art.133º CPA (que faria com que
fosse o acto Nulo).
· Acto b)- vício (houve um erro na verificação dos
pressupostos de facto- Presidente achou que Bernardo não tinha rendimentos e,
afinal, não só tinha como eram elevados). Ou seja, o pressuposto de facto de
aplicação da norma (não ter rendimentos ou ter rendimentos baixos) logo, o acto
será anulável.
· Acto c)- violação do principio da proporcionalidade e
da igualdade, nomeadamente em sentido positivo. Ou seja, violação do art.13º da
CRP que refere nomeadamente que se a pessoa tem dificuldades, colocando-a em
situação de desigualdade face a outrem, terá de ter ajudas no sentido de ficar
em posição de igualdade- material e não meramente jurídica.
. Acto d) – verifica-se um desvio de poder, uma vez que o fim a
que era destinada a bolsa referida no conteúdo da norma (definido previamente-
para alunos com graves carências económicas), foi violada (tendo sido atribuída
por mérito académico- o fim da norma).
Caberá fazer aqui uma distinção entre o desvio de poder para
fins privados ou para fins públicos. Trata-se do primeiro caso quando o fim da
norma é preterido em favor de outro fim igualmente de utilidade pública. Ou
seja, o titular do cargo não viola o fim da norma para promover interesses
seus, particulares ou do seu circulo de contactos pessoais (família, amigos
etc). O segundo caso ocorre quando o fim da norma é afastado em favor de fins e
objectivos particulares, que nada têm que ver com o interesse público.
Cabe ainda sublinhar, que desvio de poder não consubstancia a
figura da usurpação de poder. Desvio de poder- a norma designa x pessoa para
prosseguir o fim da norma mas essa pessoa fá-lo orientada por finalidades que
não estão na norma. Ao passo que usurpação de poder ou de funções, ocorre
quando a norma atribui competências à pessoa x e a pessoa y toma essas funções
para si, à revelia da lei.
. Acto e)- está implícita uma violação do princípio da
imparcialidade, uma vez que o Presidente do Conselho Directivo atribui a bolsa
com base na relação que tem com o pai do favorecido.
Neste caso não será, verdadeiramente, uma violação da norma:
Eduardo é efectivamente um estudante carenciado. O que ocorre é efectivamente,
a violação do princípio da imparcialidade. Existem três tipos de mecanismos
legais para prevenir que seja violado este princípio: sistema de impedimentos
(que diz que x pessoa não pode ser juiz de um processo em que tenha ligações
pessoais com uma das partes interessadas- mecanismo obrigatório); pedido de
escusa (em que é o próprio sujeito, decisor, pode afastar-se do processo por sua
própria decisão- este mecanismo não é obrigatório por lei mas o decisor pode
lançar mão dele se quiser) e, por fim, o de suspeição legal (que é um mecanismo
que está na lei e que não proibindo, impõe especiais deveres de cautela quando
há fundadas razões para crer que o decisor tem directa ou indirectamente
interesse na causa).
Não se trata de uma situação de impedimento (art.48º d) CPA);
podemos falar sim numa mera irregularidade posto que o fim da norma foi
respeitado.
Referências bibliográficas
- Amaral do, Freitas; vol II
- Quadros, Fausto; livro de casos práticos AADFL
Raquel da Fonseca Simões Correia
Nº 21797
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