quarta-feira, 27 de maio de 2015

Da europeização do Direito Administrativo Português e do reflexo no regime do procedimento administrativo, mormente na anulação dos actos administrativos aquando da violação do Direito da União por parte dos Estados Membros


No presente texto, procuraremos traçar o quadro histórico – sistemático que conduziu o legislador a incluir no novo CPA (artigo 168º n.º 7) a previsão da anulação de acto administrativo julgado valido por sentença transitada em Julgado, proferida por um Tribunal Administrativo.

Posteriormente analisaremos a consagração plasmada do artigo 168º n.7 do NCPA e bem assim alguma da jurisprudência mais recente emanada do TJUE.

 

Do Fenómeno da Europeização do Direito Administrativo Português

Refere, Fausto Quadros, op cit, pp 387, que foi o professor Marcello Caetano quem primeiramente, no longínquo ano de 1967, abordou, escrevendo, sobre o “Direito Administrativo Europeu”.

Mas, foi sobretudo a partir de 1993, com a criação, pelo Tratado de Maastricht, da União Europeia e do ensejo de a aprofundar, que, por via, quer dos Tratados, quer sobretudo da Jurisprudência emanada do, hoje, Tribunal de Justiça da União -  TJUE, na densificação de um conjunto de princípios (sejam o da aplicabilidade direta, do efeito direto  e o do primado) que sustentam a força emanadora do Direito da União, aumentou a pressão  deste  sobre os direitos nacionais no sentido da adaptação destes àquele e concomitantemente da sua penetração nos sistemas jurídicos estaduais (Fausto Quadros; op cit).

 

Neste sentido foi-se percorrendo um caminho assente no Dever Comunitário dos Estados e dos seus poderes de aplicar o Direito Comunitário (hoje da União) e, acrescente-se, das decisões, e sua execução, provenientes da Instituições Comunitárias, mormente no plano Administrativo.
 
Sendo certo que aos Estados Membros (EM’s) é reconhecido o direito à sua autonomia procedimento e processual, este não pode constituir, no dizer do TJ, razão para que o EM não respeite, cumprindo, as suas obrigações que são uma consequência da cooperação Leal dos EM’s para com a União (Cfr, acórdão Simmenthal, proc 106/77).
 
Resulta por conseguinte, que o Direito Administrativo Nacional (nos seus vários ramos: Financeiro, Económico, da concorrência, das autarquias locais, da educação, do ordenamento do território, ….) encontra-se, desde profundamente influenciado e porque não dize-lo, moderado, pelo, se me é permitido afirmar, direito administrativo da União.
 
Aqui chegados, perguntamo-nos de que modo o Direito Administrativo da União se reflete, sobre o particular vértice do Procedimento Administrativo ?

Na análise desta questão, implica que prima facie, se teçam algumas considerações sobre, nomeadamente o principio da Cooperação, antes vertido no artigo 10º do TCE, e hoje, parcialmente) positivado no artigo 4º n.º 3 do Tratado da União Europeia (TEU) sob a designação de principio da cooperação leal.

Em virtude do princípio da cooperação leal, a União e os Estados-Membros respeitam-se e assistem-se mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados.

Os Estados-Membros tomam todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos actos das instituições da União.

Os Estados-Membros facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm-se de qualquer medida susceptível de pôr em perigo a realização dos objectivos da União.

 Principio que materializa a obrigação dos EM’s na vertente positiva de facere e na vertente negativa, ou seja de non facere, ou seja de não actuarem ou actuarem em sentido inverso.
 

Não olvidando que nos termos do artigo 8º n.º 4 da CRP, o direito produzido pelas instituições europeias, com respeito pelas suas atribuições e princípios orientadores, vale na nossa ordem jurídica. Prevalecendo o direito da União sobre as normas do direito interno (Cfr, Gomes, Ana, op cit).

Da conjugação destas duas realidades, a par com a decisão do emanada do TJCE, actual TJUE,no processo Simmenthal, onde à luz do principio do primado do Direito Comunitário, se impõem a obrigatoriedade dos EM’s agirem em consonância com o Direito Comunitário, mesmo que este se apresente contrário ao nacional, ou ainda não tenha por aqueles sido objeto de execução.

Perante este desiderato legal e jurisprudencial, e no tocante aos actos administrativos nacionais, se a Administração de um EM emana um acto administrativo, ainda que constitutivo de direitos para o particular, mas se se apresente contrário a uma norma da União ou a uma decisão administrativa de uma Instituição da União, deve esse acto ser, na terminologia à data, objecto de revogação, hoje, à luz do novo CPA, artigo 168º  n.º 7, anulado.
 

Questão lateral -  Sendo o acto administrativo anulado por violação/não respeito, por parte do EM do Direito da União, mas em respeito pelo disposto no Direito nacional, existe o dever de ressarcimento do particular?

Sobre esta temática relembremos que o TJ, desde o acórdão Francovich (proc. C-6/90), que o principio segundo os Estados Membros são obrigados a ressarcir os danos causados aos particulares por violação do direito comunitário que lhes são imputáveis é igualmente aplicavel quando a violação em causa resulte de um órgão jurisprudencial decidindo em última instância, desde que a norma de direito comunitário violada se destina a conferir direitos aos particulares; Sendo a teoria da responsabilidade do Estado Membro, por violação da obrigação de facere ou non facere, aprofundada desenvolvida e extendida (aos actos do órgãos jurisdicionais) no caso Kobler. Jurisprudência que encontrou consagração legal no atual artigo 172º n.º 3 e 4 do Novo Código do Procedimento Administrativo (NCPA).



 Apesar de nos havermos afastado um pouco do cerne da problemática equacionada, retomemos a questão da construção evolutiva do direito administrativo da união, da  jurisprudência do TJ  e da sua influência no procedimento administrativo nacional.

Sintetizaremos seguida alguma construção jurisprudencial do TJ, que maior impacto tiveram na manifestação vinculativa do efeito do Primado do Direito Administrativo da EU sob os Direitos Administrativos dos EM’s, mormente em sede de procedimento administrativo, na esfera dos actos administrativos nacionais que executam o Direito da União.
 

Partindo do caso concreto – Caso Alcan (processo C-24/95).

Resumindo, o governo do Land (simplificando, governo regional) Alemão concedeu em 1983 um auxilio de 8 milhões à Alcan detentora de uma fabrica de alumínios, para a auxiliar, fruto do aumento do preço da eletricidade, e evitar o despedimento de algumas dezenas de funcionários.

Em dezembro de 83, a Comissão a coberto do poder, que lhe emana do disposto no artigo 88º TCE (atual artigo 108º do TFUE), de fiscalizar a concessão de auxílios de Estado previsto no artigo 87. (atual artigo 107º do TFUE), considerou este auxilio ilegal, á luz do direito comunitário ordenando a recuperação do mesmo. Não tendo o auxilio sido restituído, por inércia do Governo do Land, a Comissão intenta uma ação por incumprimento contra a Alemanha.

Tendo o TJ condenado a Alemanha por incumprimento da decisão da Comissão. Em 1989, sendo outro o governo do Land, foi revogada a decisão da atribuição do auxilio.

A Alcan recorre e o tribunal nacional, tendo por base o CPA alemão, considerou que havendo decorrido mais de um ano sobre a decisão de atribuição do auxilio, expirou o prazo para a sua revogação. O Governo do Land oferece recurso para instância superior, tendo esta  submetido ao TJ três questões prejudiciais, que em sumula: podem ou não as decisões administrativas nacionais ser revogadas, ainda que contrariando o direito nacional alemão que dita a proteção dos direitos dos cidadãos, quando de boa-fé?

Resulta do acórdão do TJ que a autoridade nacional competente está obrigada por força do direito comunitário a revogar a decisão da concessão de um auxilio ilegalmente atribuído, em conformidade com uma decisão definitiva da Comissão que declarou esse auxilio incompatível e exige a sua recuperação.  Considerando ainda o Tribunal que a Alcan não poderia ter tido uma confiança legítima na regularidade da concessão do auxílio porquanto a mesma não foi informada à Comissão.
 

Entende, assim o TJ, que mesmo que a lei nacional, visasse à luz do princípio da segurança e certeza jurídica, por via da fixação de um limite temporal, limitar a possibilidade de revogação de um acto administrativo a autoridade competente está obrigada, por força do direito comunitário, a revogar a decisão de concessão de um auxílio atribuído ilegalmente, em conformidade com uma decisão definitiva da Comissão que declara o auxílio incompatível e exige a sua recuperação, mesmo quando o direito nacional a exclui em razão da extinção do enriquecimento, na ausência de má-fé do beneficiário do auxílio.

 
Num outro arresto do TJ caso MILCHKONTOR, precisou que ainda que a revogação dos actos de concessão de auxílios estatais se deva fazer à luz do direito nacional dos EM’s, estes não podem servir-se de práticas ou situações da sua ordem jurídica interna para não justificar o não respeito das suas obrigações, isto é, de respeitar o direito da U E e garantir a sua plena eficácia.
 

 Da Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo
Compendiando alguma jurisprudência do STA, observa-se que durante vários anos e de forma consistente, se pronunciou no sentido de negar a revogação de actos administrativos para além do prazo de um ano sobre a data do acto de concessão (Gomes, Ana, Op. cit), em consonância com o regime da revogação dos actos administrativos plasmado no CPA no regime da revogação do acto administrativo.

 
 
Concluíndo

A luz dos acórdãos referidos, passou a caber aos EM’s europeizarem-se e alterar, necessariamente, o regime de revogação dos actos administrativos, conformando os seus códigos do procedimento, com o Direito da EU e a sua jurisprudência.

 

Cremos, supra, ter percorrido e ajudado o leitor a apreender  das razões de facto e de direito, da alteração do regime do Instituto da Revogação, no novo CPA, e na introdução de algumas disposições (mormente no artigo 168.  N.º 7)  que possam parecer, aos menos conhecedores do Direito da União, ou aos mais acérrimos, fundamentalistas, interpretes da texto constitucional, inconstitucionais.



Fontes: 

GOMES, Ana Santa, “ A Revogação dos Actos Administrativos dos Estados Membros com base na violação do direito da União Europeia”, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2007, T.4799;

LANCEIRO, Rui Tavares, “ O dever de anulação do artigo 168º n.º 7 do Novo CPA e a Jurisprudência Kuhne & Heitz, in Estudos de homenagem ao Doutor Rui Machete, [em linha, http://www.icjp.pt/content/o-dever-de-anulacao-do-artigo-168o-no-7-do-novo-cpa-e-jurisprudencia-kuhne-heitz;  2015]
 
QUADROS, Fausto, “ A Europeização do Contencioso Administrativo”, in Estudos de homenagem ao Professor Marcelo Caetano, Vol. 1, Coimbra Editora, 2006,  pp 385-405;

Tratado UE e TFUE

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