sexta-feira, 29 de maio de 2015

Da sanção jurídica para a preterição de uma formalidade essencial do dever de fundamentar


Com a Revolução Francesa, assiste-se, a um novo paradigma nas relações entre o Estado e os cidadãos. Passados da arbitrariedade judiciária do antigo regime o Estado liberal configura-se como um Estado de garantias: as sentenças judiciárias precisam de ser fundamentadas como garantia da licitude das decisões. Mais tarde, também, a Administração veio a incorporar esta garantia nos procedimentos administrativos.
O procedimento é uma sequência de actos dirigidos a um fim. No caso do procedimento administrativo, esse conjunto de formalidades tem como fim a prática de um acto ou a emanação de um regulamento. No presente estudo, pronunciar-nos-emos apenas no que toca à fundamentação dos actos.
Tendo em conta que o acto administrativo é uma decisão individual e concreta que vai surtir efeitos na esfera dos particulares, é necessário que os direitos destes sejam acautelados. É a própria Constituição que afirma no artigo 266/1 que o interesse público é prosseguido na ponderação com os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Conclui-se, assim, que o procedimento evita a arbitrariedade da actuação adminstrativa lesando os direitos dos cidadãos. Há dois instrumentos essenciais que visam acautelar, precisamente, esta funcionalidade garantística do procedimento: a audiência dos interessados (art. 121 CPA) e o dever de fundamentação (art. 152 CPA).
No primeiro destes, dá-se hipótese ao particular afectado pela decisão de se pronunciar sobre o mérito ou legalidade desta, num juízo ex ante, precavendo assim possíveis efeitos nefastos dos efeitos do acto sobre a sua esfera. No segundo, em estudo, o particular tem a oportunidade de conhecer, ex post, o porquê dos efeitos que a Administração achou conforme ao interesse público fazer impender sobre a sua esfera.
O art. 268/3 estabelece a obrigatoriedade de fundamentação dos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos. Esta norma estabelece um direito para o particular, ou apenas um dever objectivo para a Administração sem correspondente direito subjectivo, situação de cuja possibilidade já Jhering falava? Efectivamente, tem a doutrina discutido se a fundamentação é um direito fundamental ou não, tendo presente a já aludida teleologia de garante do procedimento e dos seus elementos. Com Gomes Canotilho e Vital Moreira pensa-se que sim.
Ainda que assim não fosse, segue outra linha de argumentação. Não se questiona o direito fundamental de acesso aos tribunais (art. 20 CRP). Pergunta-se é se podem igualmente qualificar-se como fundamentais os direitos instrumentais de outros que são fundamentais através da norma do art. 17 CRP. Considera-se aqui uma clara instrumentalização da fundamentação face ao acesso aos tribunais: não pode o particular impugnar o acto de forma que se considere eficaz sem que conheça o porquê dessa decisão (informação que a Administração tem por ter sido ela a praticar o acto), até por respeito ao princípio da igualdade das armas (art. 20/4, in fine CRP), uma vez que não pode fazer uma boa defesa por falta de elementos de facto.
Assim considerado, pode ver-se que a nível constitucional e de direitos fundamentais, parece proceder a tese de que ao dever de fundamentação constitui um correspondente direito subjectivo público dotado de jusfundamentalidade, como argumenta Miguel Prata Roque.
A nível de Direito da União Europeia, também há uma linha de argumentação possível para que se considere a fundamentação como direito subjectivo público e fundamental. Tendo em linha de vista o art. 8/4 CRP, que estabelece o princípio do primado do Direito da União Europeia, bem como o art. 6/1 do Tratado da União Europeia, conjugado com o art. 41/2, al. c) da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o particular tem o direito fundamental a que a Administração fundamente as decisões que o afectem.
Há, assim, uma verdadeira relatividade entre a obrigação da Administração fundamentar os actos, com o direito fundamental de o particular ver esses actos fundamentados.
Conclui-se o estudo dizendo que, segundo o art. 161/2 al. d) do CPA, “são nulos actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental”. Por conseguinte, a preterição da fundamentação dos actos, como direito fundamental, isto é, a total abstenção de fundamentação, faz inexistir a própria revelação desse direito, anulando-o. Assim sendo, será nulo o acto que não seja fundamentado.


Bibliografia:
Gomes Canotilho/Vital Moreira; CRP anotada: volume II, Coimbra: Coimbra Editora, 4º edição, anotação ao artigo 268º, 2014;

Miguel Prata Roque; Acto nulo ou anulável? – A jusfundamentalidade do direito da audiência prévia e do direito à fundamentação, in Cadernos de justiça administrativa, nº 78, 2009, PP. 17 ss;

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